terça-feira, 30 de agosto de 2011

Pequenos Roteiros da Vida

CENA 274 - CASA - INTERIOR / DIA

PEDRO, o filho mais velho, quatro anos, almoça com o pai. Mexe a comida para um lado, mexe para o outro e nada de comer.


                         PEDRO
           ...Pai, não quero mais não.

                         JOMAR
           ...Tem que comer tudo, filho. Você está 
           com anemia.

                         PEDRO
           ... Eu não estou com "agunia"! O Thia-
                           guinho que é "aguniado"!               



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Dia de Chuva

Diria o eclesiastes que São Pedro desfila sua ira na forma de pesadas lâminas, liquidase geladas, a castigar a cidade. Para um ermitão, entretanto, não seria errôneo afirmar que jorra aquosa benevolência dos jardins celestiais.


Para nosso herói, Abel - 36 anos, vestindo um terno amarrotado sem gravata - porém, era apenas a pujança da natureza reverberando-lhe o inferno astral, tal qual carunchoso espelho deforme, cujo reflexo apresenta-se agigantado. Sentado displicentemente numa mesa de bar, observa o chover.


Marina, 24 anos, bonita, estilo esportivo, caminha devagar pela chuva, absorvendo a sensação de calmaria que só os amantes de chuva conhecem. Cantarola baixinho, em harmoniosa confluência ao mal(?) tempo.


Ela entra no bar. Dirige-se ao balcão. Um homem gordo, de olhos saltados e perdidos se distrai com a realidade falsa da TV. Pede-lhe água. Ele pega uma garrafa, dá a Marina e volta sua atenção novamente à TV, a única realidade com que parece se importar.


Marina bebe a água devagar. Olha à sua volta. Só agora repara em Abel. É visível que não faz parte da ambiência. Apesar de amarrotado e displicente, possui um ar aristocrático que lhe denuncia ser um forasteiro na roda. Um verdadeiro peixe fora d’água. Ou ainda, um peixe na aguardente. 

Marina se diverte com a observação e surpreende-se por alguém de inteligível distinção estar bebendo àquela hora da manhã.


Assim como o gato do provérbio, Marina não resiste à curiosidade e cumprimenta Abel, que, perdido em seus pensamentos, parece não ouvi-la. Toca-lhe de leve o ombro. Este, surpreendido, responde ao belo sorriso de Marina com um sorriso falseado, mal disfarçando o desânimo.


“Posso sentar?” Sem esperar por resposta, Marina puxa a cadeira lascivamente.


Visivelmente sem jeito, Abel a cumprimenta. Conversam. André repara na beleza de Marina e parece não prestar muita atenção no que ela diz. Vê-se claramente através de seus gestos e linguagens corporais que Marina está interessada em André e este, timidamente, está aberto às suas investidas.


Gradativamente a chuva cede espaço a feixes luminosos, predecessores do astro maior, despertado de sua breve hibernação.


Muito tempo passado, nossos heróis estão agora de mãos dadas. Abel, sem conseguir conter o sorriso, paga a conta enquanto Marina se espreguiça gostosamente, olhando para a rua.


Sem que ela perceba, ele tira um papel do bolso, sem mostrar a ninguém. Abre o papel e dá uma olhada. A carta-testamento. Seu adeus ao mundo cruel. Despedida para o suicídio. Rasga a carta e joga no lixo.


Ao saírem do bar, Marina o abraça e ele a beija. Primeiro timidamente. Aos poucos, deixa aflorar toda ternura e essência de sua alma, traduzidos num beijo apaixonado.


Abel respira felicidade. Seu coração bombeia, extasiado, o sangue que lhe flui nas veias. Saía das profundezas direto para o paraíso, sem escalas. Não houve tempo nem para descompressão. Uma hora atrás, não via luz no fim do túnel e eis que agora vislumbra o fim do arco-íris, com pote de ouro e tudo.


Neste momento aparece Jorge, o esposo de Marina. Homem forte, 45 anos, semblante transtornado, saca um revólver e o descarrega furiosamente em cima de André, que cai morto. Junto aos disparos, ouvem-se trovões.


Jorge, gigantesco primata, arrasta Marina pelos cabelos. Esta, petrificada, grita sua dor em silêncio. Os transeuntes se jogam no chão e se abaixam assustados.


Volta a chover sobre o corpo de André estendido na calçada.


FIM