quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Radical

Os dois ficavam encurvados sobre a mesa, olhando o mundo pela vidraça do bar. E fazendo comentários.
   -Burguesada...
   -Aproveitem, aproveitem. A mais-valia vai acabar.

Uma jovem senhora passava pela calçada em frente todos os dias à mesma hora. Bonita. Elegante. Entrava no seu monza branco e saía, sem nem fazer sinal. Dona do mundo.

  -Olha só.
  -Hoje está de botinha. Veja você.
  -Sabe quanto custa o casaco? O meu salário não paga uma manga.
  -Essa tá marcada.
  -Ah, tá.
  -Quando chegar o dia ela vai ver.
  -Tribunal do povo.
  -Não. Dessa eu mesmo me encarrego.
  -Ah, é?
  -Mando prender. A do monza branco. Mecha no cabelo. Tragam pro meu escritório.
  -E ela chega.
  -Ah, chega. Nesse passinho dela. Muito petulante. Bonitinha e tudo. "Exijo meus direitos."
  -Rá! Direitos...
  -Agora a lei somos nós, madame. Tire esse casaco!
  -Isso.
  -Ela vai me olhar com medo. Vai dizer "por favor, não me machuque. Olha, eu era até meio PT". Vai chorar um pouquinho. O beicinho vai tremer.
  -E você, firme.
  -Sei não...
  -O quê?!
  -É que. Sei lá.
  -Vai firme, cara.
  -Aí eu pego ela e... e beijo.
  -Beija?
  -Beijo ela toda. beijo os pés dela. Fujo com ela!
  -Pô, cara - disse o outro, decepcionado - me admira você.

Ficaram olhando enquanto a jovem senhora entrava no monza branco e arrancava, sem nem olhar para o lado. Sem saber que ele existia, e o que fizera por ela.

Luis Fernando Veríssimo

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